O Cavaleiro das Trevas – ***** de *****
Sinopse: Após dois anos desde o surgimento do Batman (Christian Bale), os criminosos de Gotham City têm muito o que temer. Com a ajuda do tenente James Gordon (Gary Oldman) e do promotor público Harvey Dent (Aaron Eckhart), Batman luta contra o crime organizado. Acuados com o combate, os chefes do crime aceitam a proposta feita pelo Coringa (Heath Ledger) e o contratam para combater o Homem-Morcego.
“O Cavaleiro das Trevas” revelou-se um filme tão perfeito em sua totalidade que fica até difícil escolher por onde começo a redigir este texto. Não sei quais aspectos da obra deveria comentar primeiro, já que todos mantêm um equilíbrio tão forte entre si que torna-se praticamente impossível priorizar um. Pois é, pelo jeito terei de fazer algo que não estou nem um pouco acostumado a fazer e me render aos apelos do mainstream, ou seja, terei de começar analisando aquilo que todos almejam saber: qual Coringa é o melhor, o de Ledger ou o de Nicholson?
Incrível ver como o falecimento do ator australiano em janeiro do corrente ano colaborou, de uma maneira estranhamente macabra, para a promoção do filme. A fim de testemunhar a última atuação da carreira deste jovem grande talento do cinema contemporâneo, espectadores do mundo inteiro, mesmo os que não se mostram fãs do Homem-Morcego, fizeram filas imensas às portas dos cinemas. Até mesmo em uma roda entre cinéfilos o assunto não é outro, a não ser: o Coringa de Heath Ledger e a sua respectiva atuação. É mister, ao comentar sobre Cinema, que se mencione o nome do jovem ator talentoso falecido no intróito deste ano. Mas enfim, pondo as tergiversações de lado e respondendo à pergunta que não quer calar, o melhor coringa é o de… bem, vejamos… depende. Sim, sei muito bem que esta é a resposta de praxe de todo indivíduo que almeja “sair pela tangente” (como está sendo o meu caso agora), mas esta é a pura realidade.
Se analisarmos em termos de atuação, Ledger vence na interpretação de uma maneira geral, mas perde em termos de carisma. Contudo, devemos levar em conta que o novo Coringa está muito além de ser um vilão simpático (conforme ocorreu com o personagem de Nicholson no filme de 1989), muito pelo contrário, aqui, o roteiro almejou criar um vilão assustador, doentio, psicótico, insano ao extremo. Em outras palavras, um personagem mais plausível de ser absorvido em um contexto real (minha frase predileta), principalmente se tomarmos como cenário os Estados Unidos da América, pós 11 de setembro de 2001.
Finalizando esta analogia entre os personagens de Nicholson e Ledger, diria que se o segundo não é tão original quanto o primeiro (sim, pois este não possui as bugigangas peculiares daquele, tais como: um saquinho de dar risadas, balões cheios de gases venenosos, um tônico que estica os lábios de quem os toma, dando a impressão de que a vítima está sorrindo), ao menos ele se mostra um vilão muito mais convincente e assustador, além de possui uma carga dramática infinitamente superior àquele, o que o torna ligeiramente superior ao Coringa do filme de Tim Burton.
E quanto à atuação de Ledger, é tudo isso o que estão comentando? Bem, Ledger encarna o personagem com maestria e confere uma fortíssima carga dramática ao mesmo, mas discordo completamente do que o diretor Christopher Nolan afirmou durante uma entrevista, onde mencionava que o ator australiano faz uma atuação tão cativante quanto a que Jack Nicholson realizara em “Um Estranho no Ninho”. O ator, é claro, mostra um talento bem acima da média durante a sua composição, tornando o seu personagem ainda mais real e marcante do que ele já seria por si só.
A fim de conferir total verossimilhança ao seu Coringa, Ledger adota maneirismos que condizem plenamente com o estado psicológico do vilão, sem apelar a clichês e a trejeitos artificiais. Note, por exemplo, as alterações constantes de tom de voz do ator (fato que nos remete à lembrança de uma pessoa com forte grau de insanidade), e na dificuldade que este encontra em fixar seu olhar em um determinado objeto ou pessoa, o que indica o quão perturbado é o personagem.
Contudo, o ápice da atuação de Ledger reside quando este contracena com Christian Bale, que, por sinal, teve uma evolução artística muito notável do filme anterior, onde já havia realizado um trabalho seguro, para este segundo episódio. A seqüência em que Batman interroga o seu arqui-rival é, provavelmente, a que exige um maior esforço de Ledger, pois é durante esta parte do longa que o ator necessita mesclar loucura, medo e sarcasmo, todos os três ingredientes na medida certa, para que a composição de seu personagem soe certeira de acordo com os sentimentos que está vivenciando naquele momento.
Outro aspecto da obra que tem sido muito comentado são as ideologias de cada um dos personagens de “O Cavaleiro das Trevas” e não é para menos. Todos (todos mesmo) os personagens do filme em questão possuem uma ideologia, desde o mais revolucionário ao mais reacionário, e isto tudo torna o roteiro muito mais complexo (e falo isso positivamente, é claro). Harvey Dent (futuro Duas-Caras), por exemplo, é um promotor público conservador e que crê no sistema como um agente neutralizador do crime. Entretanto, durante o desenrolar da película, o próprio sistema em que ele tanto confiava acaba traindo-o, tirando-o tudo o que mais lhe era importante na vida e isso acaba fazendo com que ele mude completamente a sua personalidade (e vale ressaltar que o roteiro aborda tal mutação da maneira mais natural o possível).
Batman, por sua vez, segue uma ideologia que, de certa forma, se revela altamente reacionária. E é inegável que um dos maiores acertos do longa resida justamente na construção do alter ego do jovem milionário Bruce Wayne. Longe de ser um super-herói tão politicamente correto quanto o patético Superman, ou tão estoicista quanto o ótimo Homem-Aranha, Batman explicita neste longa todo o seu lado obscuro de uma maneira jamais vista anteriormente. A fim de obter informações que o levem à captura de perigosos marginais ou ao salvamento de pessoas indefesas, o cavaleiro das trevas não hesita em esmurrar a face de uma pessoa que não possua quaisquer chances de revide, ou arremessar esta mesma pessoa contra a parede, ou ainda jogar uma outra pessoa do quarto andar de um prédio quebrando-lhe as duas pernas com o único propósito de intimidá-la. Em outras palavras, o famoso super-herói (herói?) adota neste longa uma postura maquiavélica: “os fins justificam os meios”.
Outro ponto forte do caráter de Batman abordado aqui são as crises existenciais deste, posteriores a um trágico acontecimento que ocorre no início do terceiro ato da trama. E falando em terceiro ato e desenvolvimento do protagonista, a atitude (que não irei revelar qual é, por razões óbvias) que o Homem-Morcego toma no final deste longa é algo digno dos mais fortes aplausos, pois dramatiza ainda mais o personagem e a estória desenvolvida acerca deste.
E, por fim, voltemos ao Coringa. Sim, eu sei, já abordei demasiadamente este personagem no intróito deste texto, mas a verdade é que não há meios de definir e/ou descrever um personagem tão importante apenas com os adjetivos supracitados. Carregado de um forte humor negro (muito bem empregado diga-se. Notem a cena do lápis, logo no início da película) e uma dramatização intelectual de fazer inveja a qualquer vilão de histórias em quadrinhos, a caracterização do arqui-rival do Homem-Morcego pode se equiparar, sem medo de fazer analogias exageradas e/ou desmedidas, a personagens importantíssimos da história do Cinema, como por exemplo, Tyler Durden e Alex De Large. E levando-se em conta que o Coringa deste “O Cavaleiro das Trevas” se revela um verdadeiro agente do caos, a analogia entre este e os protagonistas dos sensacionais “Clube da Luta” e “Laranja Mecânica” (ambos fazem parte de meu “Top 10 – Melhores Filmes de Todos os Tempos”), torna-se mais do que pertinente.
O roteiro também acerta a mão ao não deixar claro os motivos que levam o antagonista a agir de tal modo, adotando esta filosofia anarco-niilista como estilo de vida. Ao invés de amarrar as pontas, o que soaria muito formulaíco, o roteiro brilhantemente bem escrito pelos irmãos Cristopher (que também assina como diretor da obra) e Jonathan Nolan opta por deixar que o público o faça. À primeira vista, temos a impressão de que Coringa tivera uma infância sofrida, vira o pai violentar a mãe e cortar-lhe a face com uma faca, mas a película se desenvolve e outras novas hipóteses completamente diferentes desta anterior nos são apresentadas, fazendo com que não saibamos ao certo o que o levou realmente a se tornar o que é, fato que o torna ainda mais misterioso.
A maior qualidade deste “O Cavaleiro das Trevas”, no entanto, reside no embate, tanto psicológico quanto físico, entre herói e vilão. A direção de Nolan se mostra sensível o bastante para conferir ao espectador muita tensão com tal embate desde o começo do filme, quando somos apresentados a um audacioso assalto a banco, arquitetado pelo vilão mor desta obra cinematográfica. Daí em diante, temos uma disputa entre o Homem-Morcego e seu arqui-rival que muito nos remete aos duelos travados entre personagens importantíssimos da história da Literatura, tais como Sherlock Holmes e Professor Moriart, e da história do Cinema também, como é o caso entre Vincent Hanna e Neil McCauley no interessante “Fogo Contra Fogo”.
Presenteando o público com dois personagens inteligentíssimos, o filme, como já fôra mencionado, firma seu destaque no confronto entre Batman e Coringa. Quando não contamos com as cenas de ação que, ao contrário de “Batman Begins”, são sensacionais, tensas, eletrizantes e muitíssimo bem dirigidas por Cristopher Nolan, alem, é claro, de serem regadas por uma trilha sonora fascinante que aumenta ainda mais o clima de tensão das mesmas, o roteiro nos brinda com um embate psicológico ainda mais tenso entre ambos os personagens.
O indivíduo que afirmar que o embate entre herói e vilão é não menos que sensacional deve ter a sua sanidade questionada. Não tem como não ficarmos tensos e roendo as unhas durante o filme todo (sem exagero, o clima de tensão está ali presente do primeiro ao último segundo de projeção) com cenas como a que o, desde já memorável e imortalizado, personagem de Heath Ledger arquiteta e põe em prática um assalto a banco (logo no começo da película), ou a seqüência incluída no final do longa onde ele planeja a explosão de um navio carregado de pessoas e, principalmente, a maneira como o vilão prepara a sua fuga da prisão (a propósito, se o leitor havia achado inteligentíssima a cena em que Magneto foge da prisão em “X-Men II”, prepare-se para a ainda mais inteligente e bem arquitetada fuga que Coringa realiza neste longa).
Batman também não fica muito atrás no que diz respeito à inteligência. Se por um lado o vilão tem sempre um plano mirabolante em mente, o herói possui sempre um “antídoto” para os mesmos, e o fato deste “contragolpe” nem sempre funcionar da maneira esperada, faz com que o protagonista do filme se torne mais humano, devido à sua visível e claudicante vulnerabilidade, o que não pode deixar de contar pontos para a avaliação final da película.
Por fim, como venho me acostumando ao redigir os últimos textos de minha autoria, aproveitarei este parágrafo de encerramento para condensar tudo o que fôra supracitado até então. “O Cavaleiro das Trevas” é, desde já, uma incontestável obra-prima do Cinema mundial e merece todo o sucesso que vem fazendo até o presente momento. Muito superior à grande maioria das adaptações de histórias em quadrinhos, este longa se revela uma agradabilíssima surpresa, respeitando imensamente o espectador, fugindo da grande maioria dos clichês e estereótipos do gênero e, o que é melhor, inovando o mesmo, nos apresentando a personagens completamente bem desenvolvidos pelo roteiro. A ação é estarrecedora e cresce ainda mais graças à extraordinariamente competente direção de Christopher Nolan e à cativante e tensa trilha-sonora composta magistralmente por, ninguém mais, ninguém menos, que Hans Zimmer e James Newton Howard. E mesmo com tantas qualidades visíveis e explicitadas, “O Cavaleiro das Trevas”, assim como o seu antagonista, possui uma carta na manga, que vem a ser sua maior qualidade: o embate, sobretudo psicológico, entre vilão e herói, além de nos propiciar questionamentos sobre a situação caótica que a sociedade capitalista se encontra.
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